05 de Agosto de 2016
Você já errou ao fazer a coisa certa no momento errado?
Por Mario Sabino
Outro dia me perguntaram qual havia sido o grande erro que eu havia cometido na vida.Embatuquei. Foram tantos. Pedi para que o sujeito delimitasse o campo: familiar, amoroso, intelectual ou profissional? Ele respondeu "profissional".
Não tive dúvida: o meu maior erro foi tentar sair do jornalismo, desobedecendo à máxima de Sêneca, o pensador romano, segundo a qual, para sermos felizes, devemos "estabelecer antecipadamente o que buscamos atingir e, depois, examinar por onde podemos chegar lá mais rapidamente, desde que seja pelo caminho certo". Eu havia me desviado do caminho que havia traçado para mim e me dera mal.
O meu interlocutor não se satisfez com Sêneca e pediu para que eu fosse pontual: qual havia sido o grande erro que eu havia cometido no jornalismo.
Pensei em quase todas as bobagens que escrevi (difícil lembrar de todas, quando se tem 32 anos de profissão), mas nenhuma me pareceu forte o suficiente para saciar a súbita vontade de penitenciar-me. Passados longos cinco minutos, afirmei que o meu grande erro profissional havia sido ter feito a coisa certa no momento errado.
Em 1998, quando assumi o cargo de editor-executivo de Artes e Espetáculos da revista Veja, fui incumbido pelo então diretor de redação de dar uma espanada na poeira que se depositara na editoria. Uma das minhas providências foi criar a seção "Veja Recomenda", para cobrir mais extensamente o mercado cultural. Além disso, decidi tornar a lista de livros mais vendidos rigorosa e semanal. Havia anos, a lista era elaborada de qualquer jeito por um funcionário da produção da revista, a partir dos relatórios enviados pelas livrarias, e era publicada apenas quando sobrava espaço nas páginas da editoria, sem periodicidade definida.
Determinei que a lista entraria toda semana, na seção recém-nascida, e que seria feita pelo jornalista encarregado de cobrir a área de livros, com a ajuda de um programa de computador que cruzaria as informações prestadas pelas livrarias, para evitar que eventuais discrepâncias entre os dados fornecidos falsificassem o resultado.
Em 2004, já na condição de redator-chefe, lancei o meu primeiro romance, O Dia em que Matei Meu Pai. Nos relatórios enviados pelas livrarias e cruzados pelo programa de computador, o romance ficou nas duas semanas seguintes logo abaixo do décimo lugar, portanto fora da lista. Até que, na terceira semana após o lançamento, a editora Record, que publica os meus livros, entrou em contato comigo para dizer que a revista andava classificando títulos de não ficção como ficção. Os títulos eram Perdas & Ganhos e Pensar É Transgredir, ambos de Lya Luft, e As Filhas da Princesa, de Jean P. Sasson, que havia passado a ficção de uma semana para outra. A Record disse, ainda, que As Mentiras que os Homens Contam, de Luis Fernando Verissimo, não podia ser considerado "ficção", visto que um quarto do livro era composto por textos não ficcionais (fora a eterna discussão sobre se crônicas jornalísticas, mesmo quando recorrem à fantasia, podem ser consideradas ficção).
A editora Record estava certa: a lista de mais vendidos da Veja, que ganhara rigor e peso seis anos antes, errara. Subvertia categorias e posições. No caso de As Mentiras que os Homens Contam, por ter sido incluído em ficção, o livro havia deixado de entrar na lista na semana anterior, como vim a constatar. Ou seja, Luis Fernando Verissimo tinha sido prejudicado ao máximo. Os equívocos haviam sido gerados pelas próprias livrarias, que trocaram as categorias desses títulos, e continuados pelas falhas nos controles da revista.
A questão me colocava numa situação de conflito de interesses bastante peculiar – se eu corrigisse a lista, o meu romance entraria entre os dez mais vendidos, o que obviamente me beneficiava; se não corrigisse, eu não entraria, mas estaria falsificando mais uma vez a informação, lesando igualmente outros autores.
Ouvi os jornalistas envolvidos na elaboração da lista e o diretor de redação. Todos afirmaram que deveríamos corrigir a lista. A responsabilidade, no entanto, foi integralmente minha. Resolvi ir adiante nas correções, com a publicação de um box, ao lado da lista, para explicá-las. O meu romance acabou entrando, por uma única semana, no último lugar entre os mais vendidos. É óbvio que fiquei contente, mas com certo desconforto. Não teria sido melhor corrigir a lista só depois que o meu livro tivesse sumido do pedaço?
Em 2008, quatro anos mais tarde, quando virei alvo dos blogueiros sujos por causa do mensalão, esse episódio voltou-se contra mim. Fui acusado de falsificar a lista para que o meu romance figurasse nela. Abriram-se as portas do inferno: expuseram a minha vida particular, porque eu namorava a diretora editorial da Record, e inventaram que eu mandava subordinados escreverem resenhas positivas sobre os meus livros na Veja e até as editava. Reinaldo Azevedo gentilmente abriu espaço para que eu me defendesse na internet, mas a minha defesa só fez aumentar a sanha dos bucaneiros do PT. Eu errei ao fazer a coisa certa no momento errado, porque também abri um flanco para os inimigos.
Depois de contar essa história ao meu interlocutor, perguntei-lhe se ele havia feito algo semelhante. Estou esperando a resposta.
E você, prezado leitor, já errou ao fazer a coisa certa no momento errado?
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